Já faz mais de um ano que fomos todos pegos de surpresa com o então surto de coronavírus que, posteriormente, se transformaria em pandemia e nos mantém ainda hoje em completo estado de suspense. Entretanto, não demorou muito para toda esta situação passasse a ser encarada como um desafio a ser superado, inspirando arquitetos e arquitetas ao redor do mundo a desenvolver soluções e estratégias projetuais para combater a maior e mais longa crise sanitária da modernidade. Neste contexto, é importante mencionar o fato de que a grande maioria destas inovações foram comissionadas ou comercializadas pelo setor imobiliário e portanto, representam um benefício a apenas uma pequena parcela da população. Entretanto, à medida que estas empresas se esforçam para oferecer melhores alternativas aos clientes com melhores condições financeiras, a pandemia faz muito mais vítimas junto à classe trabalhadora, principalmente no que se refere às restrições que lhes são impostas e os poucos benefícios que lhes são oferecidos. Somado a isso, quando observamos as condições de moradia das classes mais baixas, especialmente em países mais pobres ou aqueles de economia emergente, a precarização dos espaços habitáveis é um agravante o qual, resulta diretamente da total liberdade e da falta de fiscalização que gozam os empreendedores do mercado imobiliário nestes países.
Dito isso, não são poucos aqueles que vêm a recente pandemia como uma oportunidade para fazer negócios e capitalizar, para vender novos produtos e para divulgar informações excessivamente otimistas e despojadas de qualquer tipo de comprometimento social. Recentemente, o The New York Times publicou uma manchete na qual afirma que a pandemia está impulsionando o mercado imobiliário para o futuro. Mas verdade seja dita, o setor imobiliário não está nem um pouco preocupado com o futuro, tampouco com o presente. Quem dera considerar o bem-estar das pessoas. Os principais atores do mercado imobiliário tem pouco a dizer a respeito da atual crise. Seu posicionamento quanto a isso é bastante evidente, como mostram as dezenas de ordens de despejo emitidas após o início de uma série de greves de aluguel nos Estados Unidos, assim como o processo generalizado de gentrificação testemunhado nos quatro cantos do país ao longo dos últimos anos.
Em recente matéria publicada pelo The New York Times, Stefanos Chen fala sobre como as empresas do setor imobiliário têm se beneficiado deste atual momento para vender produtos e serviços para a desinfecção de espaços e edifícios, soluções que chegam a custar 4 mil dólares. Alguns proprietários, cujos edifícios contêm uma série de amenidades como academias de ginástica, quadras esportivas, piscinas e vestiários, investiram alto em pulverizadores e desinfetantes eletrostáticos—tudo isso para oferecer melhores condições de conforto àqueles que podem pagar, obviamente. A pandemia também impulsionou o mercado de design de móveis, o qual oferece soluções para aqueles que procuram maximizar o espaço domestico ou adaptá-lo para o modo de trabalho remoto. Áreas de trabalho retrateis ou camas suspensas penduradas no teto são algumas das ‘inovações’ disponíveis para aqueles que estão dispostos a desembolsar uma considerável quantia de dinheiro. Sankarshan Murthy, CEO da Bumblebee Spaces, empresa dedicada a projetar e desenvolver tais soluções, observa que no momento em que “as pessoas passaram a ficar mais tempo dentro de casa ... [elas] perceberam imediatamente que seus espaços de vida não eram compatíveis ou adequados para se viver—e muito menos para viver e trabalhar ao mesmo tempo.” E esta inadequação não é um problema novo, não é algo que se cria do dia para a noite, é um defeito de fábrica com o qual estamos convivendo a muito tempo mas que só agora, nos foi dada a oportunidade de enfrentá-lo.
A verdade é que muitos arquitetos e arquitetas não parecem considerar o capitalismo como uma condicionante de projeto, menos ainda como um problema com o qual é preciso lidar ao conceber seus espaços e edifícios. Não há no mundo inovação tecnológica capaz de resolver nossos verdadeiros e reais problemas, como a falta de acesso à moradia digna diga-se de passagem. Isso significa dizer que, mesmo que tal tecnologia exista, ela não será eficaz se estiver disponível apenas para aqueles que podem pagar por ela—porque aquelas que mais a necessitam não tem esse dinheiro para gastar. Vivemos em um modelo de sociedade onde tudo é bastante previsível, mas ainda assim caricaturalmente nefasto, o qual oferece soluções e alternativas apenas para aqueles que correm muito menos riscos e obviamente, vivem em melhores condições que os demais.
Segundo o Times, a renda média dos locatários na cidade de Nova Iorque antes da pandemia girava em torno dos US$ 50.000 anuais. Entretanto, a maioria dos habitantes não mora em edifícios com academias de ginástica, piscinas e quadras esportivas, em seus condomínios sequer os elevadores funcionam.
E essa desigualdade econômica não se restringe apenas às vantagens de um determinado grupo sobre outro. A falta de moradia digna, por exemplo, não é um fenômeno novo e tampouco desconhecido. Ainda assim, foi muito difícil para que os responsáveis pela indústria da restauração e os administradores públicos chegassem a um acordo a respeito da utilização de suas estruturas temporárias como abrigos emergenciais para as pessoas em situação de rua durante o inverno pandêmico. Neste contexto, fica claro que a questões do acesso à infraestrutura básica é também uma questão de ordem puramente econômica. Porém, o fato de que os restaurantes costumam instalar suas estruturas temporárias no “espaço de domínio público”, é bastante irônico, ou em última análise, até inconseqüente.
Muitos acreditam que as inovações tecnológicas, eventualmente acabam banalizadas, assim como os smartphones passaram de artigos de luxo a itens imprescindíveis e também acessíveis em um par de anos. Acontece que, este tipo de cronograma não é nem um pouco previsível, assim como uma nova tecnologia pode ser rapidamente popularizada, outra pode levar décadas para se tornar acessível. Quando consideramos as soluções tecnológicas que surgiram em resposta à crise de Covid-19, no entanto, as coisas mudam de figura. Enquanto arquitetos e arquitetas se esforçam para construir espaços mais agradáveis, seguros e confortáveis para alguns, outros tantos permanecem invisíveis, tendo que encontrar sozinhos as soluções para seus problemas mais urgentes.
Neste cenário, é inegável que quanto menos privilégios tenha uma determinada comunidade, menos condições de acesso ela terá às inovações que deveriam privilegiar à maioria em detrimento de alguns, e não ao contrário. Na cidade de Nova Iorque, por exemplo, a Secretária de Habitação Social emitiu mais de 1 milhão de solicitações formais de vistoria e manutenção de apartamentos alugados entre 2018 e 2019. A maior incidência foi no Bronx, coincidentemente o bairro mais pobre da cidade, onde mais de 10 por cento dos moradores vivem em casas com pelo menos uma solicitação de vistoria técnica pendente. A evidente falta de fiscalização nesta região da cidade, por outro lado, opera como um agravante da situação, fazendo com que a maioria dos proprietários desconsiderem qualquer tipo obrigação ou demanda em relação aos seus inquilinos. Se esses mesmos donos de imóveis não estão nem um pouco preocupados em resolver pequenos problemas que poderiam facilitar a vida de seus inquilinos, por que cargas d'água eles pensariam em investir milhares de dólares em soluções alternativas e inovadoras sendo que eles não tem nada a ganhar (ou perder) com isso? Não há nenhum tipo de incentivo, fiscal ou legal, que os leve sequer a considerar a possibilidade de investir em algo que possa trazer benefícios imediatos àqueles que alugam seus imóveis. No mês de abril de 2020, em pelo menos 34 conjuntos de habitação social na cidade de Nova Iorque faltavam produtos de limpeza e higiene básica. E este não é um caso isolado nos Estados Unidos—esse tipo de delinquência contra a saúde pública é algo bastante comum e frequente em todo o território nacional.
Por outro lado, ao invés de serem objeto de intervenções urgentes como a construção de infra-estruturas ou saneamento básico, muitos dos condomínio de habitação social contam hoje com soluções de alta tecnologia em segurança biométrica. E embora tais sistemas não tenham sido instalados apenas recentemente, a demanda dos proprietários por sistemas de segurança cresceu depois do início da pandemia. A segurança biométrica em condomínios de habitação social tem sido até agora—mais ou menos explicitamente—utilizadas como uma ferramenta de vigilância. Três parlamentares propuseram um projeto de lei, ainda aguardando aprovação, para proibir a instalação de tais instrumentos em unidades públicas de habitação, citando falhas tecnológicas, preocupações com a privacidade dos usuários sem contar o fato de que tais comunidades são aquelas mais visadas, ou incomodadas, pela polícia. Nestas circunstâncias, a pandemia de coronavírus é, como já foi amplamente observado, o pretexto ideal para impor autoritariamente medidas de vigilância com a desculpa de uma falsa preocupação com a saúde pública. Um dos fabricante de produtos de vigilância, a BioConnect, chegou a anunciar que seu sistema de segurança era capaz de “impedir que as pessoas vigiadas fossem infectadas pelo vírus”. Enquanto isso, a empresa de segurança Naborly, a qual oferece aos proprietários de imóveis uma série de gráficos e cálculos detalhados a respeito do risco dos inquilinos em não pagarem seus aluguéis, aproveitou-se da oportunidade para solicitar que os proprietários contribuam com a criação de um banco de dados com os nomes e outras informações dos inquilinos que não pagam seus aluguéis em dia.
Essas e outras ferramentas quem têm sido utilizadas por imobiliárias e proprietários com cada vez mais frequência depois do início da pandemia, como a plataforma para a otimização de despejos criada pela ClickNotices, constituem o novo aparato “tecnológico de propriedade” ou proptech, como tem sido chamado nos Estados Unidos. Scott Beyer escreveu recentemente no Market Urbanism Report, que, como foi dito, a proptech “se tornou uma ferramenta muito comum depois do início da pandemia”. A proptech é composta por uma série de novos instrumentos tecnológicos, os quais vão desde banais ambientes virtuais de apresentação de apartamentos e edifícios, até ferramentas mais inescrupulosas, como serviços para facilitar o lobby e a desapropriação de terras e propriedades. Sob esta ótica, é alarmante o que o futuro nos reserva uma vez que o já limitado campo de ação legal dos inquilinos será definitivamente assolado, uma vez que os proprietários e imobiliárias poderão tomar grande parte de suas decisões remotamente—sempre às custas dos inquilinos. A conclusão de Bayer é bastante óbvia: embora o uso de tais ferramentas possa estar sendo acelerado pela atual crise sanitária, nenhuma destas medidas não está sendo encarada como algo temporário, elas são, como disse um empreendedor da cidade de New Orleans, “permanentes...e não serão utilizadas apenas por um breve período de tempo.”
Do ponto de vista do mercado, que comunidades mais abastadas tenham acesso privilegiado a uma série de benefícios é a regra e não a excessão. Isso também serve para os agentes imobiliários que vêm na pandemia uma oportunidade para capitalizar e impor as suas regras de mercado em detrimento das necessidades básicas das populações de baixa renda. O mercado imobiliário—com ênfase no “mercado”—é um negócio extremamente lucrativo e cada vez mais bem explorado por aqueles que sabem manipular as regras do jogo para melhor servirem aos seus interesses nefastos. É contra isso que devemos nos opor, e com todas as nossas forças, combater. A mercantilização desregulamentada sobre o estoque imobiliário de uma cidade ou país se dá sempre às custas daqueles que têm menos condições ou poder de voz, é uma prática antiética e um agravador de uma desigualdade social estrutural. E, considerando o atual momento de crise, que mais do que de saúde pública é uma crise social, quem paga o pato é a classe trabalhadora que é empurrada para a linha de frente, embora desarmadas e sem condições de lutar por seus direitos mais básicos. Neste contexto, é imperativo que nós, arquitetos e arquitetas, consideremos para quem estamos de fato projetando, e como as nossas decisões de projeto podem afetar aqueles que não podem pagar por um projeto de arquitetura ou sequer sabem o significado da palavra assistência técnica profissional.
Este artigo foi publicado originalmente no The Architect's Newspaper como “Designer Health for Designer Tenants.”
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